PÚBLICO, 19 de Maio de 2002 |
Entrevista com Sahar Saba
Se o Mundo Voltar a Esquecer o Afeganistão
"Será Outra Catástrofe"
Por ALEXANDRA PRADO COELHO
O mundo não viu o perigo dos taliban e sofreu um choque. "A situação pode repetir-se", avisa a representante da associação de mulheres afegãs RAWA. Sahar Saba não confia nos novos governantes do Afeganistão.
Para a RAWA (Revolutionary Association of the Women of Afghanistan) quase nada mudou depois da queda dos taliban. Continuam a trabalhar, na clandestinidade, para ajudar as mulheres afegãs, agora confrontadas com uma situação semelhante à que existiu entre 1992 e 96: domínio dos senhores da guerra, pilhagens, raptos, violações, insegurança generalizada.
"As mesmas pessoas regressaram ao poder", denuncia Sahar Saba, do comité para as relações externas da associação. Magra, pequena, morena, muito jovem, fala numa voz baixa e não aceita ser fotografada. Tal como as mulheres afegãs que não se atrevem ainda a tirar a "burqa", Sahar sente que não está em segurança para mostrar a cara. Esteve três dias em Lisboa a convite do Bloco de Esquerda. Para que o mundo não volte a esquecer-se do Afeganistão.
PÚBLICO - Um recente relatório da Human Rights Watch (HRW) diz que a situação das mulheres no Afeganistão continua a ser muito difícil depois da queda dos taliban. As coisas não mudaram?
SAHAR SABA - Infelizmente as coisas não mudaram, sobretudo nas zonas rurais. A falta de segurança é, neste momento, o maior problema, não apenas para as mulheres, mas para toda a gente. Continua a haver combates entre os senhores da guerra, há pilhagens, raptos, violações, perseguições a grupos étnicos diferentes. Só houve algumas mudanças em Cabul, com a presença das tropas das Nações Unidas. Mas mesmo aí, a maioria das mulheres ainda tem tanto medo que continua a usar a "burqa", não acreditam que tenham o direito de não o fazer.
A imagem que tem passado para fora, de que as coisas melhoraram, não é verdadeira. É difícil esperar muito de pessoas que têm a mesma mentalidade que os taliban, é difícil esperar mudanças com este Governo.
A situação de segurança é pior neste momento do que com os taliban?
Com os taliban havia segurança, mas o preço a pagar era a nossa liberdade. Agora, se aparentemente temos liberdade, não temos qualquer segurança. A actual situação recorda-nos o que se passou nos anos 1992/96, quando estes mesmos grupos estavam no poder e houve centenas de casos de pilhagens, raptos, violações. As mesmas pessoas regressaram agora ao poder. Os senhores da guerra vingam-se do tempo dos taliban, mas as vítimas são os inocentes.
Segundo a HRW, as mulheres que são violadas não têm, muitas vezes, apoio das famílias, e por isso recusam-se a dizer o que lhes aconteceu.
Sim, na maioria dos casos não falam. Este é um dos grandes problemas. Uma das funções da nossa organização, a RAWA, é documentar questões de violações dos direitos humanos, sobretudo de mulheres, mas temos muita dificuldade em convencer as pessoas a falar destas questões. Na maior parte dos casos as mulheres preferem suicidar-se do que ter que contar à família. Há muito pouca ajuda dos familiares por causa das tradições, da ideia de dignidade, e de desonra da família.
E quando não há nenhum sítio para onde se voltar, não resta nenhuma esperança. Muitas raparigas tornam-se mortas-vivas. Conheço uma destas raparigas que tem 23 anos, foi violada há cerca de oito anos, e até hoje não disse uma palavra, não se ri, não fala, só quer estar isolada de toda a gente. A RAWA tentou dar-lhe novamente esperança e educação e não conseguimos nada.
Há também relatos de famílias que vendem as filhas, às vezes em troca de sacos de cereais. O que é que acontece a essas raparigas?
É difícil descobrir. Sabemos que foram vendidas várias vezes, mas não sabemos a quem, não sabemos quantas vezes foram violadas, nem quantas vezes foram vendidas. Em certos casos, depois de as usarem, matam-nas. Infelizmente, as famílias pensam que estão a garantir uma vida melhor para os seus filhos, têm a esperança de lhes estarem a salvar as vidas, não apenas às raparigas, mas também aos rapazes. Têm que o fazer porque não aguentam ver os filhos morrer à frente deles.
Falei com um pai de uma rapariga de quatro anos que foi vendida. Perguntei-lhe se a tinha voltado a ver, se sabia quem é que a tinha comprado. Ele disse-me que o comprador era um árabe, que lhe pagou em cereais. Não lhe perguntou o nome, nem onde vivia, nem para onde ia levar a criança. Passaram-se quatro anos e ele nunca mais soube nada dela.
A RAWA tenta localizar estas crianças?
É muito difícil para nós. Já é complicado falar com os pais que, na maior parte das vezes não querem falar connosco, porque têm medo. Mais difícil ainda é seguir o caso. Mas um dos nossos objectivos é seguir estes casos e chamar a atenção da comunidade internacional. Estes senhores da guerra, estes fundamentalistas, são responsáveis e uma das razões pelas quais deviam ser levados à justiça é esta: forçaram pais a vender os filhos, e eles próprios compraram-nos para os vender aos árabes.
Confirma que algumas das leis dos taliban sobre as mulheres continuam em vigor?
Essa é outra razão pela qual nós dizemos que a situação não mudou realmente. A "sharia", a lei islâmica, continua em vigor, desde as execuções aos apedrejamentos. Se uma mulher é vista com um homem que não é parente dela será castigada. É a mesma ideologia dos taliban
O trabalho da RAWA tornou-se mais fácil depois da queda dos taliban?
No Paquistão houve algumas diferenças, há um pouco mais de liberdade. No Afeganistão, as coisas continuam a funcionar como antes. Só que agora é mais perigoso, porque as pessoas da Aliança do Norte são mais cultas e conhecem-nos melhor que os taliban, que muitas vezes eram analfabetos, e mais fáceis de enganar. Se apanhavam a nossa revista, olhavam para as imagens e podíamos enganá-los. Mas com estes líderes temos que ter cuidado, porque temos uma longa história de luta com eles.
Estão desapontadas com a comunidade internacional?
Essa é outra preocupação para nós: se não houver interesse no Afeganistão, sabemos que será esquecido. Nos últimos tempos, a atenção voltou-se para outros locais do mundo. Muitas pessoas com quem tenho falado no Ocidente dizem que a situação afegã melhorou. Mas não é assim. Se se esquecerem de nós será outra catástrofe.
Precisamos que a comunidade internacional continue atenta ao Afeganistão. Sobretudo enquanto estes grupos lá estiverem. Espero que tenham aprendido com o passado. Antes de 11 de Setembro ninguém via o perigo dos taliban. Depois ficaram chocados. A situação pode agora repetir-se.