PÚBLICO , 25 de Setembro de 2001

Afegãs em Revolução Debaixo dos Panos

Da nossa enviada Alexandra Lucas Coelho, em Pershawar


Ocultas sob a "burqa", o pano que as tapa, duas mil afegãs lutam clandestinamente contra o regime taliban nas principais cidades do Afeganistão. Ensinam as mulheres a ler, ajudam-nas a lançar uma actividade de subsistência, asseguram cuidados médicos, recrutam as mais combativas. Ao exterior, fazem chegar imagens, testemunhos e relatórios. Arriscam a vida todos os dias. Nunca foram apanhadas.

O nome de guerra é Marina. Custa a crer que tenha 21 anos. Parece uma gaiata. Olhos negros muito vivos, cabelo apanhado, sem véu nem lenço. Fala inglês a uma velocidade alucinante. Assim sentada, a beber chá num bazar de Pershawar, podia ser uma paquistanesa educada em Londres. Mas é afegã, com um mês de vida foi levada para uma prisão de Cabul e cresceu com as activistas da Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão (RAWA), uma rede clandestina de duas mil afegãs que combate o regime taliban, apoiando mulheres e crianças por todo o país.

"A única vantagem da 'burqa' [o pano que cobre as afegãs] é que podemos ver os outros, mas os outros não nos podem ver a nós. Ninguém sabe quem somos", explica Marina. Por baixo dos panos, movem-se em todo o território afegão para tentar dar às mulheres o que os taliban proibiram: escola, assistência médica, auto-suficência, conhecimento dos seus direitos.

Quando encontram uma activista em potência, recutam-na. Foi o que aconteceu com Nasreen, a adolescente sentada ao lado de Marina. Acompanha-a, aqui em Pershawar, em todos os contactos. Está a aprender. Tem 16 anos. (Ainda) só fala farsi, a principal língua do Afeganistão. (Ainda) não cumprimenta, como Marina, com um beijo. (Ainda) traz o lenço sempre sobre a cabeça.

Marina também é uma farsi. Nasceu em Cabul, no gelado Inverno de 1981, nos primeiros tempos da invasão soviética, quando o Afeganistão ainda tinha quadros superiores e, na capital, uma herança cosmopolita. O pai, formado na Alemanha, era engenheiro. A mãe, formada em Paris, professora de física e membro activo da RAWA, fundada quatro anos antes (ver caixa). Por causa de um relatório sobre a situação nas prisões afegãs, foi presa pelas tropas soviéticas e condenada a cinco anos de cadeia, com uma redução para três anos por ter um bebé.

"Eu tinha um mês. O meu pai foi exilado, fui com a minha mãe para a prisão de Sidarat. Quarenta mulheres numa cela e eu, não havia mais crianças. As primeiras coisas que aprendi foram os nomes de todos os países e capitais do mundo, um jogo, e canções patrióticas, que elas cantavam, em desafio."

Em 1984 foram libertadas. "Ficámos em Cabul, a minha mãe ensinava, mas tínhamos de estar sempre a mudar de casa, quando descobriam que ela era uma ex-prisioneira política." Quatro anos depois, no auge da fuga de milhões de afegãos, partiram para o Paquistão. A RAWA tinha duas delegações, uma em Quetta outra em Pershawar, a trabalhar com as mulheres refugiadas. "Estudei sempre nas escolas da RAWA, e aos 16 anos comecei a fazer a edição da nossa revista em urdu [a língua principal no Paquistão]."

Ossos entre ruínas

Aos 18 anos, Marina tapou-se com uma "burqa" e voltou pela primeira vez a Cabul: "Foi duro, muito duro. Estamos numa ponta da cidade e conseguimos ver a outra ponta, porque não há edifícios no meio, só ruínas. Não há portas, nem janelas, as pessoas venderam tudo o que podiam para arranjar dinheiro para comer. E quando já não tinham mais nada começaram a desenterrar ossos dos cemitérios e a vendê-los."

Nas casas das famílias, ou em ateliers de bordados e tapeçarias usados como fachada, acompanhou as activistas da RAWA que ensinam as mulheres afegãs a ler. Um crime, entre os taliban: "Estamos sempre a mudar as escolas de sítio. As crianças têm de ter muito cuidado. Somos muito prudentes." Até aqui, nunca foram apanhadas.

Há equipas de alfabetização nas zonas de Cabul (nordeste), Mazar-i Sharif (norte), Badakhshan (extremo nordeste), Herat (oeste), Farah (sudoeste), Nimruz (sudoeste), Kandahar (sudeste), e Jalalabad (leste).

"Para além disso, temos entre 50 e 100 equipas médicas móveis, só nas regiões de Cabul e da fronteira noroeste com o Paquistão, e ajudamos as pessoas a desenvolver recursos agrícolas ou criação de galinhas. Tudo isto é uma fonte de contacto com a população, e é através destas actividades que encontramos as mulheres que se podem juntar a nós, também."

Além de um site (rawa@rawa.org) e de uma revista com relatórios actualizados e fotografias, vários filmes vídeos são passados para fora. Outro crime, num regime que aboliu as imagens, incluindo televisão e fotografias: "Um dos nossos membros filmou a execução de uma mulher no estádio deportivo de Cabul, em Novembro de 1999. Ela chamava-se Zermina. Tinha assassinado o marido, mas a família do marido tinha-lhe perdoado, porque ela era mãe de sete crianças."

Há imagens de outros castigos: "Se uma rapariga virgem tem relações sexuais leva 40 chicotadas, mas se for uma mulher casada é apedrejada até à morte. Tudo isto é terrível nas zonas rurais, mas ainda mais nas cidades grandes. E aí, muitas das mulheres que vemos agora, todas cobertas, como fantasmas, eram professoras, cantoras, bailarinas, advogadas, cobrirem-se nem fazia parte da sua cultura."

Têm pena dos budas?

Marina fala também em imagens do massacre de Hazarat, em Setembro de 1998. Hazarat é um bastião xiita no centro do Afeganistão (85 por cento sunita): "Vinte aldeias foram arrasadas, 243 pessoas morreram, dois rapazes foram esfolados vivos. As mulheres e crianças foram poupadas, mas só três dos homens sobreviveram, e as colheitas foram destruídas. Elas ficaram sem nada."

Pergunta Marina: "Quanto media foram lá? Temos muita pena dos Budas de Bamyan [região vizinha de Hazarat], mas não mais do que das pessoas que morrem de forma bárbara todos os dias. Quando os budas foram destruídos, o mundo indignou-se, os primeiros-ministros queriam ir a correr salvá-los... Por favor, há tragédias humanas a acontecer."

Os taliban sabem da RAWA mas, segundo esta jovem activista, nunca conseguiram apanhar nenhum membro: "Há uma pena de prisão só para quem estiver a ler a nossa revista. Como há mulheres que foram espancadas só por usarem sapatos brancos, uma afronta, porque a cor da bandeira é branca. E se não for a cor é o barulho dos saltos dos sapatos, que pode corromper os homens... Porque eles saltam quando vêem uma mulher! Multiplique por milhões o olhar fixo que há aqui em Pershawar para uma mulher que não esteja coberta: é o olhar deles. Os taliban são totalmente iletrados, ignorantes, selvagens, assassinos. E entretanto, têm bordéis de prostitutas, geridos e frequentados por taliban."

ONU e o regresso do rei

A RAWA, segundo esta responsável em Pershawar, defende que a única solução para um Afeganistão "livre de taliban ou 'mujhaeddin'" seria "uma força de paz das Nações Unidas para desarmar os dois lados e organizar um plebiscito". Num cenário de vazio de governação - "não há nenhuma organização política popular entre os afegãos" -, Marina acredita que o futuro deveria passar pelo regresso do antigo rei, que vive exilado em Roma: "Zaircha é a única forma de poder que seria aceite agora. Costumamos dizer que preferimos o cão de Zaircha aos taliban e aos mujhaeddin."

A ferocidade anti-taliban de Marina não deve ser traduzida como um sentimento pró-americano, como ela faz questão de explicar: "Nós temos muita pena do que aconteceu em Nova Iorque, solidarizamo-nos com eles, com a sua dor, e somos contra qualquer forma de terrorismo. Mas os Estados Unidos têm de tentar descobrir qual é a forma certa de combater o terrorismo, e diferenciar uma nação de quem a domina, destruindo-a de forma criminosa."

No lugar em que estamos, começa a ouvir-se o canto de chamada para a oração. Sem parar de falar, Marina leva as mãos ao lenço que traz no vestido e cobre um pouco a cabeça. É uma revolucionária. Não deixa de ser muçulmana.





http://jornal.publico.pt/publico/2001/09/25/Destaque/X07.html





PÚBLICO , 2 de Novembro de 2001

Documentário
No Afeganistão dos Taliban

A jornalista britânica de origem afegã Saira Shah quis regressar ao seu país, agora sob o controlo do rígido regime dos taliban. Consigo levou uma fotografia do Afeganistão há muitos anos atrás, no tempo em que o seu pai aí vivia. Na imagem vê-se um jardim. Hoje, quando Saira consegue encontrar o local, só restam pedras e desolação. Usando uma câmara oculta, trabalhando clandestinamente, a jornalista atravessa parte do país, passando pela cidade de Kandahar, centro do poder taliban, e pela capital, Cabul. Recolhe imagens de execuções públicas, mulheres mortas a tiro, homens enforcados. Num país onde as mulheres se tornaram invisíveis por detrás das sufocantes burqas, Saira mostra a coragem da associação RAWA (Revolutionary Association of Women of Afghanistan), que mantém clandestinamente um cabeleireiro e uma escola para raparigas. E filma imagens chocantes do estado da clínica ginecológica no hospital de Cabul, onde praticamente não há pessoal porque as mulheres não podem trabalhar e os homens não estão autorizados a tratar doentes do sexo oposto.

Beneath the Veil



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